Endocanabinoide 2-AG
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O sistema endocanabinoide sempre intrigou a ciência. Enquanto sabemos que ele regula diversas funções vitais do organismo — como sono, humor, apetite e dor —, muitas dúvidas permanecem sobre os mecanismos específicos por trás da sua atuação. Uma dessas lacunas era: como exatamente os endocanabinoides são liberados e transportados entre as células? Vamos entender com o endocanabinoide 2-AG.

Foi justamente essa pergunta que motivou o estudo publicado em janeiro de 2025 pela revista PNAS, intitulado “The endocannabinoid 2-arachidonoylglycerol is released and transported on demand via extracellular microvesicles”. A pesquisa apresenta um novo modelo para explicar o comportamento do 2-AG, um dos principais endocanabinoides do corpo humano, e pode representar uma virada de chave na forma como compreendemos esse sistema tão complexo. 

O que é o endocanabinoide 2-AG? 

O 2-arachidonoylglicerol (2-AG) é um dos dois principais endocanabinoides conhecidos, ao lado da anandamida. Ele é um lipídio sinalizador que atua como agonista dos receptores CB1 e CB2, presentes em diversas regiões do corpo, especialmente no cérebro. Seu papel é fundamental na regulação de processos como neurotransmissão, inflamação e neuroplasticidade. 

Diferentemente dos neurotransmissores clássicos, o 2-AG não é armazenado em vesículas pré-sinápticas, mas sim produzido sob demanda, ou seja, em resposta a estímulos específicos. No entanto, até recentemente, pouco se sabia sobre como ele era liberado e transportado — lacuna que o novo estudo pretende preencher. 

Como os endocanabinoides são tradicionalmente compreendidos? 

A visão mais aceita até então era a do modelo de produção e liberação sob demanda, segundo o qual os endocanabinoides são sintetizados apenas quando necessários e se difundem livremente pela membrana celular até alcançar os receptores canabinoides. 

Três principais hipóteses explicavam o transporte: 

  1. Difusão passiva pela membrana lipídica 
  2. Transporte facilitado por proteínas específicas 
  3. Liberação por vesículas extracelulares 

      Essas hipóteses, no entanto, geravam contradições. A difusão passiva, por exemplo, não explicava totalmente a direcionalidade e regulação da sinalização endocanabinoide, e os dados sobre transportadores ainda são inconclusivos. 

      Para entender melhor essas rotas, vale conferir nosso artigo sobre como funciona o sistema endocanabinoide

      O modelo “on-demand release” proposto pelo novo estudo 

      Endocanabinoide 2-AG

      A pesquisa liderada por cientistas do CNRS e da Universidade de Estrasburgo propõe um modelo complementar: o da liberação sob demanda mediada por microvesículas extracelulares. 

      Utilizando uma combinação de tecnologias de ponta — sensores fluorescentes específicos para endocanabinoides (GRAB-eCB2.0), co-culturas celulares e modelagem matemática — os pesquisadores descobriram que neurônios liberam microvesículas contendo exclusivamente 2-AG (e não anandamida) em resposta a estímulos específicos. 

      Esse processo é dependente da ativação de proteínas como a diacilglicerol lipase (DAGL), a proteína quinase C (PKC) e a Arf6, uma GTPase envolvida na formação de vesículas. A liberação também foi sensível a inibidores de difusão de endocanabinoides, o que indica um sistema regulado e não aleatório. 

      O estudo observou que cada vesícula carrega cerca de 2.000 moléculas de 2-AG, o que mostra uma capacidade significativa de sinalização — com potencial para modular processos como plasticidade sináptica de maneira altamente controlada. 

      O papel das microvesículas no transporte de Endocanabinoide 2-AG 

      As microvesículas extracelulares (MVs) são pequenas estruturas derivadas da membrana plasmática, diferentes das vesículas sinápticas clássicas. Elas funcionam como mensageiras celulares, transportando lipídios, proteínas e RNAs entre células. 

      No contexto do sistema endocanabinoide, a descoberta de que o 2-AG pode ser encapsulado e transportado por MVs revoluciona nossa compreensão sobre como ele atua nos receptores canabinoides

      Esse tipo de transporte: 

      • Garante proteção contra degradação enzimática; 
      • Permite sinalização direcionada e eficiente; 
      • Pode modular efeitos em áreas específicas do cérebro. 

      Implicações para a neurociência e o sistema endocanabinoide 

      A proposta do modelo “on-demand release” complementa e amplia o conceito anterior de produção sob demanda. O mais interessante é que, ao mostrar que vesículas podem transportar lipídios sinalizadores como o 2-AG, o estudo coloca o sistema endocanabinoide lado a lado com os sistemas clássicos de neurotransmissão, como o glutamato ou GABA, mas com uma linguagem biológica própria e altamente refinada. 

      Isso abre espaço para novas interpretações sobre como a cannabis e seus derivados atuam no cérebro, sobretudo em relação ao CBD e THC. Se a sinalização endocanabinoide pode ser feita por vesículas, então terapias que interferem na formação ou liberação dessas estruturas podem ter efeitos mais precisos e menos invasivos. 

      Para entender melhor esse impacto, recomendamos nosso artigo sobre cannabis e funções cognitivas e também este sobre o papel do CBD no sistema nervoso central

      O que a descoberta do Endocanabinoide 2-AG muda na prática? 

      • Reforça o papel do 2-AG como sinalizador lipídico sofisticado 
      • Aponta para novas rotas farmacológicas: em vez de estimular os receptores, poderíamos estimular a liberação de vesículas contendo 2-AG 
      • Ajuda a compreender disfunções associadas a deficiências endocanabinoides, como ansiedade, epilepsia, Parkinson e dor crônica 

      Além disso, ao detalhar os mecanismos moleculares com precisão, o estudo fortalece a legitimidade científica do sistema endocanabinoide, ainda frequentemente ignorado ou subestimado pela medicina tradicional. 

      Se você se interessa por avanços nesse campo, vale conferir nossa análise sobre pesquisadores e divulgação científica sobre cannabis

      Próximos passos e desafios 

      Apesar dos achados promissores, ainda há lacunas a serem exploradas: 

      • Validação in vivo: a maior parte do estudo foi feita em coculturas celulares, e agora é necessário confirmar o modelo em organismos vivos. 
      • Compreensão da ausência de anandamida nas vesículas: por que só o 2-AG aparece nessa forma de transporte? 
      • Exploração terapêutica: como controlar a formação de vesículas para fins medicinais? 
      Próximos passos

      São perguntas que vão guiar os próximos anos de pesquisa sobre o sistema endocanabinoide e a biologia das vesículas extracelulares. 

      O estudo publicado na PNAS em janeiro de 2025 representa um marco na pesquisa sobre endocanabinoides. Ao demonstrar que o 2-AG pode ser liberado e transportado sob demanda via microvesículas extracelulares, ele oferece um novo modelo de sinalização que combina precisão, regulação e sofisticação biológica. 

      A descoberta aprofunda nossa compreensão sobre o sistema endocanabinoide e pode abrir caminhos para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes, seguros e específicos. 

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