A relação entre o uso de cannabis e a redução da dependência de substâncias como álcool, opioides e nicotina tem ganhado destaque nos últimos anos. Mas será que existem evidências científicas de que a cannabis ajuda na dependência de nicotina?

Um estudo publicado no periódico científico British Journal of Pharmacology (2019) investigou exatamente isso: os efeitos da tetrahidrocanabivarina (THCV), um canabinoide não psicotrópico, em diversos modelos de dependência de nicotina em roedores. Os resultados são promissores e podem abrir caminho para novas terapias no futuro.
Neste artigo, explicamos de forma didática o que é o THCV, como foi conduzida a pesquisa, quais foram os principais achados e o que isso representa para a prática clínica.
THCV e sua importância
A tetrahidrocanabivarina (THCV) é um canabinoide encontrado em quantidades menores na planta de cannabis. Apesar da semelhança com o THC, o THCV tem um perfil farmacológico bem diferente:
- É não psicotrópico em doses baixas.
- Atua como antagonista dos receptores CB1, o que pode modular o sistema de recompensa do cérebro.
- Tem sido estudado por possíveis efeitos sobre controle de apetite, síndrome metabólica e redução do uso de substâncias.
Diferente do CBD, que atua como modulador indireto, o THCV parece ter ação direta e mais seletiva sobre os circuitos de reforço e compulsão — justamente os que são ativados no vício em nicotina.
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Como o estudo avaliou a dependência de nicotina em roedores?
O estudo de Xi et al. (2019) investigou os efeitos do THCV em vários modelos de comportamento relacionados à dependência de nicotina, incluindo:
- Autoadministração intravenosa de nicotina
- Sensibilização locomotora induzida por nicotina
- Preferência condicionada por ambiente (CPP)
- Síndrome de abstinência precipitada por mecamylamina
- Reinstauração do comportamento de busca pela droga
Todos os testes foram feitos com roedores treinados para simular o comportamento de usuários humanos de nicotina, o que é um modelo bem aceito para estudos pré-clínicos de dependência.
Para quem não está familiarizado: a autoadministração é quando o animal aprende a acionar um dispositivo para receber doses de nicotina. Isso simula a compulsão e a busca ativa pela substância.
Principais resultados do estudo com THCV
Os pesquisadores testaram diferentes doses de THCV e observaram como os animais reagiam a situações de uso, abstinência e recaída. Os achados foram consistentes:
1. Redução da autoadministração de nicotina: Roedores tratados com THCV mostraram menor interesse em buscar nicotina. Isso indica uma diminuição no valor de recompensa da substância.
2. Diminuição da sensibilização locomotora: A nicotina geralmente causa hiperatividade em roedores. O THCV bloqueou esse efeito, sugerindo menor ativação dopaminérgica.
3. Redução da preferência por ambiente associado à droga: Na CPP, os animais preferem ambientes onde receberam nicotina. Com THCV, essa preferência foi significativamente reduzida.
4. Redução dos sintomas de abstinência: Roedores tratados com THCV tiveram menos sinais físicos de abstinência, como tremores, irritabilidade e hiperatividade.
5. Prevenção da recaída: Após um período sem nicotina, os animais tratados com THCV não voltaram a buscar a substância quando expostos a estímulos associados ao uso anterior.
Esses efeitos foram observados sem prejuízo à locomoção geral, ao apetite ou à coordenação, o que reforça o perfil seguro do composto.
O papel dos canabinoides na dependência
Ainda existe muito preconceito e desinformação sobre o uso de cannabis no tratamento de dependências. No entanto, estudos como esse reforçam que certos compostos da planta especialmente os não psicotrópicos podem ajudar a modular o sistema de recompensa e reduzir o uso de substâncias.
O sistema endocanabinoide participa da regulação de:
- Motivação e reforço
- Recompensa dopaminérgica
- Humor e ansiedade
- Resposta ao estresse
- Plasticidade sináptica
Ao atuar sobre os receptores CB1 e CB2, o THCV parece reduzir o impacto da nicotina sobre esses circuitos cerebrais, diminuindo tanto o prazer quanto a necessidade de reposição constante da substância.
O que isso significa para a prática clínica?
Apesar de o estudo ter sido feito em roedores, os resultados abrem uma discussão importante sobre o uso de canabinoides no tratamento de tabagismo — uma das principais causas de morte evitável no mundo.
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde:
- Mais de 160 mil mortes por ano estão associadas ao tabaco.
- O índice de recaída após parar de fumar ultrapassa 70% nos primeiros 6 meses.
- Muitos pacientes não se adaptam aos tratamentos tradicionais com reposição de nicotina, bupropiona ou vareniclina.
Uma possível futura aplicação do THCV seria como terapia complementar para reduzir a fissura, os sintomas de abstinência e o risco de recaída — especialmente em pacientes que não respondem às abordagens convencionais.
Vale lembrar: o THCV ainda não está disponível em formulações puras para prescrição no Brasil, e seu uso precisa seguir as normativas da Anvisa. Mas nada impede que, no futuro, ele seja incorporado às estratégias de controle do tabagismo.
O que falta para o THCV ser usado em humanos?
Para que um composto como o THCV seja aprovado como terapia, ele precisa passar por diversas etapas:
- Estudos pré-clínicos em animais (como o que estamos discutindo)
- Ensaios clínicos de fase 1, avaliando segurança em humanos saudáveis
- Fase 2, testando eficácia e dose ideal em pequenos grupos de pacientes
- Fase 3, com estudos maiores e comparações com tratamentos padrão
- Revisão regulatória e aprovação
Atualmente, ainda não existem ensaios clínicos em humanos publicados sobre o THCV para dependência de nicotina, embora estudos com CBD tenham mostrado resultados preliminares positivos em outros tipos de dependência (como álcool e crack).
Acompanhar os próximos passos da pesquisa é essencial para médicos que atuam com cannabis e saúde mental.
Afinal, a cannabis ajuda na dependência de nicotina? Os dados iniciais são promissores
O estudo com roedores mostrou que o THCV tem forte potencial para reduzir o uso compulsivo de nicotina, diminuir sintomas de abstinência e prevenir recaídas. Esses resultados reforçam o interesse científico na cannabis medicinal como aliada no tratamento de vícios.
- O THCV atuou de forma seletiva sobre os comportamentos de dependência;
- Os efeitos foram observados em diferentes modelos de vício, com consistência;
- Não houve prejuízos motores, cognitivos ou de segurança nos animais.
Embora ainda faltem estudos em humanos, os achados abrem uma porta importante para a pesquisa e, futuramente, para a prática clínica.
Se você é médico e quer acompanhar as evidências mais recentes sobre cannabis medicinal, acesse gratuitamente a Biblioteca Científica do Kaya Doc. Lá você encontra análises detalhadas, estudos traduzidos e atualizações constantes sobre novas aplicações clínicas dos canabinoides.
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