O canabidiol e a cannabis, em geral, dá sono? Sim — em muitos pacientes, especialmente quando o objetivo é reduzir insônia, agitação noturna e hiperalerta. Mas não é “mágica do travesseiro”: o efeito depende da dose, da proporção CBD:THC, do horário de uso, do perfil clínico e do higiene do sono.
Neste guia no estilo Kaya Doc, destrinchamos os efeitos calmantes do canabidiol (CBD), como o sistema endocanabinoide (SEC) rege o ciclo sono–vigília, o que dizem os estudos clínicos, e como aplicar isso na prática clínica com segurança.
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Cannabis para insônia: o que dizem os estudos sobre qualidade do sono
Efeitos comuns do CBD e do THC
Introdução rápida: sono, insônia e por que o tema importa
- Dormir bem sustenta memória, humor, imunidade e metabolismo.
- A insônia crônica (≥3x/semana por ≥3 meses) impacta atenção, humor, risco cardiometabólico e qualidade de vida.
- Tratamentos de primeira linha incluem higiene do sono e TCC-I; fármacos (p.ex., benzodiazepínicos e Z-drugs) funcionam, mas trazem efeitos adversos e risco de dependência.
- A cannabis medicinal entra aqui como adjuvante potencial, com foco em latência para dormir, tempo total de sono e qualidade subjetiva — sempre dentro de um plano estruturado. E, apesar de o canabidiol dar sono, ele também pode ajudar.
Sistema endocanabinoide (SEC) e sono: por que cannabis “conversa” com o travesseiro
O SEC é um regulador de “termostato” corporal que integra CB1/CB2, endocanabinoides (anandamida/AEA e 2-AG) e enzimas (FAAH, MAGL). Em linguagem direta:
- CB1 (cérebro) freia a liberação de neurotransmissores e ajuda a baixar o hiperalerta; sua ativação tende a induzir e sustentar o sono.
- CB2 (imune/periferia e microglia) modula inflamação — útil quando dor e inflamação sabotam o sono.
- AEA e 2-AG oscilam ao longo do dia (ritmo circadiano) e ajustam a vontade de dormir e a profundidade do sono (REM/NREM).
- FAAH degrada AEA; quando inibida, a AEA aumenta — isso muda vigília x sonolência e pode modular TRPV1 e PPAR-α (vias relacionadas a alerta/energia).
Tradução clínica: se o SEC está desregulado, é mais provável ver insônia de manutenção, despertares e sono leve.
Recalibrar o sistema endocanabinóide com CBD (e, em alguns casos, microdoses de THC) pode diminuir o ruído fisiológico (ansiedade, dor, hiperexcitabilidade) e favorecer um sono mais reparador.
CB1 e CB2: os receptores que explicam o efeito da cannabis no corpo
CBD, THC e sono: mecanismos práticos (sem enrolação)
- CBD (não psicotrópico):
- Ansiolítico (reduz hiperalerta e ruminação noturna).
- Modula 5-HT1A, TRPV1 e PPAR-γ, influenciando latência para dormir e qualidade do sono.
- Pode reduzir despertares quando ansiedade e dor leve estão por trás da insônia.
- Dose-efeito não linear: microdoses diurnas podem ser pró-alerta; doses noturnas mais altas tendem a ser pró-sono.
- THC (psicotrópico):
- Indutor de sono em baixas doses (pode encurtar latência).
- Diminui REM em algumas pessoas (efeito controverso; às vezes útil em pesadelos).
- Risco em idosos/suscetíveis: sonolência diurna, tontura, piora cognitiva, hipotensão postural. Reserve para microdoses noturnas em casos selecionados.
- Entourage (terpenos):
- Linalol e mirceno têm perfil calmante; β-cariofileno (CB2/PPAR-γ) é anti-inflamatório — podem somar no efeito pró-sono em extratos broad/full spectrum.
Quer um passo a passo de espectros e impacto na dose? Veja Full spectrum, broad spectrum e isolado: como escolher
O que dizem os estudos: cannabis medicinal e qualidade do sono
Resumo honesto do que temos de melhor qualidade:
- Melhora subjetiva do sono aparece repetidamente como desfecho secundário em estudos de dor crônica tratados com THC+CBD (p.ex., nabiximols). A análise agrupada de ensaios clínicos mostrou benefício consistente em qualidade do sono com perfil de segurança aceitável em curto prazo.
- Ensaios cruzados em insônia primária (Austrália) com extratos padronizados reportaram aumento de tempo total de sono e melhor descanso ao acordar versus placebo.
- Parkinson (nabilona, análogo do THC): melhora de sintomas não motores, incluindo sono, em subgrupos.
- Registros observacionais (Israel/Reino Unido): altas taxas de melhora autorreferida do sono entre pacientes em uso de cannabis medicinal por 6–12 meses — úteis como “sinal”, mas com as limitações de estudos não randomizados.
- Apneia obstrutiva do sono (AOS): dronabinol (oral) reduziu IAH em ensaios iniciais; porém oxigenação e outros parâmetros nem sempre acompanharam, e houve EA dose-dependentes (sonolência/cefaleia). AOS continua território experimental — não substitui CPAP.
Em síntese: o corpo de evidências sugere que canabinoides podem melhorar sono principalmente quando há dor crônica, ansiedade e hiperalerta associados.
Para insônia primária, o sinal é promissor, porém ainda modesto e heterogêneo. Precisamos de ECRs maiores/longos, com biomarcadores e polissonografia.
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Quando considerar cannabis medicinal para dormir (e quando não)
Cenários em que pode ajudar (como adjuvante):
- Insônia com ansiedade noturna e despertares frequentes.
- Dor crônica (musculoesquelética/neuropática) que atrapalha o sono.
- Agitação/PARASSONIAS leves em quadros neurodegenerativos (avaliação caso a caso).
- Redução gradual de hipnóticos sedativos em pacientes que desejam desmame, com plano estruturado.
Cuidado/evite ou encaminhe antes:
- Apneia moderada-grave sem tratamento (avaliar CPAP/odontologia do sono primeiro).
- Transtorno bipolar com ciclagem rápida/psicose (risco com THC; se for usar, evite THC).
- Gravidez/lactação (abstenção).
- Uso problemático de substâncias sem acompanhamento.
- Idoso com risco alto de quedas: CBD preferencial, THC só em microdoses e noturno, se necessário.
Segurança, interações e monitoramento: como evitar sustos
Efeitos comuns (geralmente leves e dose-dependentes): sonolência, tontura, boca seca, fadiga, sonhos vívidos (com THC).
Riscos específicos:
- Quedas (idosos): titular devagar, preferir CBD, avaliar pressão postural.
- Cognitivo/psíquico com THC: confusão, ansiedade paradoxal; reverter reduzindo dose/retirando THC.
- Hepático: CBD altas doses → subir transaminases em suscetíveis; monitorar se houver hepatopatia ou uso de valproato.
- Interações (CYP2C19/3A4): anticoagulantes, antiepilépticos, antidepressivos, antipsicóticos — revisar e monitorar clinicamente.
Monitoramento simples (4–8 semanas):
- Escala de sono (ex.: 0–10 para latência, despertares, descanso ao acordar).
- Sonolência diurna (Epworth simplificada).
- Objetivo claro (p.ex., “reduzir latência de 60 → 25 min”).
- Plano de desmame se sem benefício após 6–8 semanas.
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- Idosos: comece ainda mais baixo; atenção a hipotensão postural, polifarmácia e risco de quedas.
- Dor crônica importante: CBD + microdose de THC no período noturno pode ser útil (sempre com meta e janela de observação curta).
- Ansiedade predominante: CBD diurno em microdoses + nocté mais robusto costuma funcionar melhor que “tudo à noite”.
- Doenças neurodegenerativas: foco em agitação noturna, viradas e despertares; acompanhamento próximo do cuidador.
- Apneia do sono: cannabis não substitui CPAP; dronabinol ainda é experimental — discuta riscos/benefícios.
Mitos e verdades rápidos (para passar aos pacientes)
CBD sempre dá sono.
Mito. Em microdoses diurnas, pode ser pró-alerta; o efeito pró-sono é mais comum em doses noturnas.
THC é o melhor para dormir.
Depende. Pode encurtar latência, mas aumenta o risco de sonolência diurna e tontura. Em idosos, use microdoses — se usar.
Posso parar meus remédios logo que começar CBD.
Não. Faça desmame supervisionado, um fármaco por vez, com metas e datas.
Óleo fraco não funciona.
Mito. Consistência + titulação importam mais do que concentração no rótulo.
Passo a passo resumido para o prescritor (modelo Kaya Doc)
- Defina o alvo: latência? despertares? dor noturna? ansiedade?
- Comece com CBD + higiene do sono; ajuste semanal.
- Reavalie em 2–3 semanas: se melhora parcial, se ansiedade diurna, adicione microdose pela manhã/tarde.
- Se refratário: considerar full spectrum mais forte em THC
- Monitore efeitos e interações; ajuste para evitar sedação diurna.
- Sem benefício em 6–8 semanas? Planeje retirada e reavalie diagnóstico (TCC-I, apneia, dor não controlada).
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Perguntas frequentes (FAQ)
Cannabis medicinal dá sono na hora?
Geralmente não é imediato como um hipnótico. Óleos sublinguais podem ajudar em 30–90 min; resposta clínica sustentada costuma aparecer em 2–4 semanas de titulação e rotina de sono alinhada.
Posso usar só em dias de crise?
Pode até ajudar, mas melhora sustentada vem de uso regular + higiene do sono. Reserve “SOS” para picos e viagens.
Qual a melhor via?
Sublingual para titulação e previsibilidade. Cápsulas para manutenção. Vaporização tem ação rápida, mas não é a via mais usada para insônia crônica.
CBD dá ressaca no dia seguinte?
Se houver sonolência diurna, ajuste horário/dose. Evite associar sedativos no mesmo horário.